quinta-feira, 31 de julho de 2025

PLOTINO E A TEORIA DAS EMANAÇÕES (PROCESSÕES)


Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

A filosofia de Plotino, um dos grandes nomes do neoplatonismo, é marcada por uma tentativa profunda de compreender o Uno como princípio supremo de toda a realidade. Inspirado sobretudo em Platão, Plotino reorganiza a tradição platônica à luz de uma metafísica da interioridade e da ascensão da alma. Seu sistema de pensamento gira em torno da ideia de que tudo o que existe emana do Uno, o que seria umas espécie de realidade absolutamente simples, transcendente e indescritível, sem que este perca sua unidade ou se modifique no processo. As chamadas "emanações" (ou processões) são, portanto, modos sucessivos de manifestação do Uno, resultando em três hipóstases principais: o Uno, o Intelecto (Nous) e a Alma (Psyché).

O Uno, em Plotino, é a fonte absoluta de tudo, e ao mesmo tempo transcende tudo. Ele está para além do ser, do pensamento e da multiplicidade. Não se pode falar propriamente do Uno como algo que "é", pois isso já implicaria alguma forma de determinação ou limite, e o Uno é precisamente aquilo que está além de toda determinação. Em suas palavras: “Tudo o que é múltiplo precisa de alguma unidade para subsistir; portanto, o princípio de todas as coisas deve ser absolutamente simples e uno” (PLOTINO, Enéadas, V.4.1).

Dessa unidade radical do Uno, brota o Intelecto, não como um ato de criação deliberada, mas como um transbordamento necessário, uma emanação inevitável da plenitude do Uno. O Intelecto, ou Nous, é a esfera das ideias, o mundo inteligível que contém as formas platônicas. É o primeiro ser após o Uno, e já possui uma estrutura dual: contempla a si mesmo e conhece as Formas. Plotino explica: “O Intelecto contempla o Uno, e, ao mesmo tempo, volta-se para si mesmo, e ao fazê-lo engendra em si as Formas; assim, ele é pensamento e objeto do pensamento, sendo, portanto, o verdadeiro Ser” (PLOTINO, Enéadas, V.1.7).

A seguir, da contemplação do Intelecto surge a Alma, a terceira hipóstase. A Alma é responsável por animar o mundo sensível e estabelecer a ponte entre o mundo inteligível e o mundo material. Ainda participa da unidade, mas com menor intensidade. Assim como o Intelecto contempla o Uno, a Alma contempla o Intelecto e, por isso, gera o cosmos visível. Plotino afirma: “A Alma, contemplando o Intelecto, tornou-se bela e fecunda; ela desejou comunicar ao mundo inferior aquilo que contemplava, e assim deu forma à matéria, fazendo dela uma imagem do mundo inteligível” (PLOTINO, Enéadas, IV.8.6).

Essas emanações não implicam uma perda para o Uno, nem um deslocamento no tempo. Elas são atemporais e não comprometem a unidade suprema. O Uno permanece inalterado e intacto, pois doar não é um ato de empobrecimento, mas de superabundância. Como diz Plotino, “O Bem é como o sol: ele não se esgota por iluminar as coisas; ao contrário, é por ser pleno que irradia” (PLOTINO, Enéadas, V.2.1).

A questão da alma humana insere-se nesse contexto metafísico. Sendo parte da Alma universal, a alma individual também possui origem divina e capacidade de ascensão. O destino próprio da alma é retornar à sua origem por meio da purificação, da contemplação e da união mística com o Uno. A queda da alma no mundo sensível é uma espécie de distração ou esquecimento de si mesma. Mas mesmo neste estado, ela conserva um elo com o divino. Assim, Plotino escreve: “Devemos subir novamente até o Bem supremo, de onde nossa alma partiu, como filhos que retornam ao lar paterno” (PLOTINO, Enéadas, I.6.8).

Essa dinâmica ascendente, isto é, o retorno do múltiplo ao Uno é o movimento inverso da emanação. É o caminho da filosofia verdadeira, que consiste não apenas em saber, mas em tornar-se aquilo que se contempla. A sabedoria, para Plotino, culmina na experiência mística da união com o Uno, em um êxtase que transcende o pensamento discursivo e as distinções da consciência. Ele relata: “Muitas vezes despertei da minha identidade corpórea para entrar em mim mesmo, e, penetrando em meu interior, contemplei uma beleza maravilhosa; então me tornei uno com o divino” (PLOTINO, Enéadas, IV.8.1).

A filosofia de Plotino não é, portanto, uma cosmologia abstrata, mas uma espiritualidade rigorosa, ele destaca que o ser humano pode reencontrar sua origem e finalidade na unidade absoluta. Sua doutrina das emanações é uma tentativa poderosa de resolver o paradoxo entre a multiplicidade do mundo e a unidade do princípio, sem recorrer à criação ex nihilo ou à separação dualista. Ao emanar, o Uno não se divide; ele permanece intacto, sendo a fonte de toda realidade. 

Deixo abaixo uma imagem das emanações segundo Plotino:



Referência

PLOTINO. Enéadas. Trad. Mário da Gama Kury. 2. ed. Brasília: Editora da UnB, 1991. (Coleção Os Pensadores).

 Tremedal - BA, 31 de julho de 2025.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

MOISÉS E O MONOTEÍSMO - FREUD

 


Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

Seria Moisés um nobre egípcio?
O sentimento religioso seria uma projeção das relações familiares?

Segundo Freud, Sim!

Em Moisés e o Monoteísmo, Sigmund Freud realiza uma das mais ousadas incursões da psicanálise no campo da religião e da história. Publicado em 1939, este livro provoca não apenas pela sua tese principal, a de que Moisés seria um egípcio e não hebreu, mas também pelo modo como Freud articula religião, trauma e memória coletiva. Unindo arqueologia, psicanálise e crítica da religião, Freud desafia a tradição judaico-cristã e propõe uma releitura da origem do monoteísmo e da constituição do povo judeu como sujeito histórico e psíquico.

A hipótese central da obra é de que Moisés foi um nobre egípcio seguidor do faraó Akhenaton, que havia instaurado o culto monoteísta a Aton, o deus solar. Após a morte do faraó e o colapso da reforma religiosa, Moisés teria liderado um grupo de hebreus, impondo-lhes uma nova religião baseada em um deus único, abstrato e moral. Como afirma o neurologista de Viena: "A minha tese é esta: Moisés foi um egípcio, provavelmente um homem de alta posição, que aderiu à religião monoteísta do faraó Akhenaton e a transmitiu a um grupo dos povos hebreus. Depois, esse Moisés foi morto por seus seguidores, o que provocou uma cisão e a formação de um trauma coletivo que só foi elaborado séculos depois" (FREUD, 2013, p. 41).

Essa elaboração do trauma coletivo, segundo Freud, é semelhante ao mecanismo de recalque e retorno do recalcado que ocorre no inconsciente individual. A morte de Moisés teria sido reprimida pelo povo, mas seus efeitos continuaram a agir na memória coletiva, influenciando o desenvolvimento da religião judaica. Este é um ponto central em que Freud aplica os conceitos psicanalíticos à história e à cultura. Em uma das passagens do livro, ele escreve:

Assim como no neurótico o trauma esquecido atua de maneira latente e reaparece sob a forma de sintomas, no povo judeu a lembrança recalcada do assassinato de Moisés persistiu sob forma disfarçada, moldando as bases de sua religião. O Deus único e severo, distante e invisível, é um reflexo da figura paterna perdida e venerada. A religião monoteísta nasce, portanto, como um retorno do recalcado, uma formação de compromisso entre a culpa inconsciente e a necessidade de coesão social (FREUD, 2013, p. 98).

A relação entre o pai morto e a constituição da religião monoteísta é uma das teses mais polêmicas do livro. Freud articula a figura de Moisés com o complexo de Édipo, sugerindo que o assassinato do pai fundador, um ato de rebelião primal, gera a culpa coletiva que será a base da moral e da lei religiosa. O monoteísmo, nesse sentido, não nasce da revelação divina, mas de um crime original. Como o próprio Freud afirma: “A religião monoteísta é a herança da culpa pela morte do pai. A moralidade, o sentimento de dever e obediência ao Deus único são substitutos psíquicos da repressão e do medo desse crime primordial” (FREUD, 2013, p. 114).


Freud também considera a figura de Moisés como uma construção histórica que passou por diversas camadas de transformação. Ele traz à tona a ideia de que duas figuras do Moisés teriam existido: o primeiro, egípcio e adepto do monoteísmo atenista, e o segundo, um sacerdote madianita. Essa fusão histórica, segundo Freud, teria sido motivada pela necessidade de ocultar o trauma do assassinato do primeiro Moisés, criando uma narrativa religiosa que apagasse o conflito inicial e unificasse o povo sob uma nova identidade.

Além do aspecto histórico e psicanalítico, Freud faz uma crítica à religião como fenômeno de origem neurótica. O sentimento religioso seria uma projeção das relações familiares, especialmente do desejo e da ambivalência em relação ao pai. Assim, o monoteísmo não é visto como um progresso racional, mas como uma sublimação de impulsos inconscientes. Em uma citação emblemática, Freud escreve:

Deus foi, no início, nada mais do que um pai engrandecido. Ele conservou os traços do pai: a força, a justiça, a severidade. A religião nada mais é do que a neurose obsessiva da humanidade, e como a neurose infantil, ela resulta de uma culpa e de um desejo reprimido (FREUD, 2013, p. 130).

Ao interpretar a religião como uma formação substitutiva, Freud antecipa reflexões contemporâneas sobre a função simbólica da fé e sua relação com a estrutura psíquica. Ele não nega a importância cultural da religião, mas destaca que seu núcleo é irracional, ligado ao inconsciente e aos mecanismos de defesa psíquicos.

Apesar das inúmeras críticas que Moisés e o Monoteísmo recebeu, tanto de estudiosos da religião quanto de historiadores, o texto permanece como uma obra instigante. Nele, Freud estende os limites da psicanálise e oferece uma nova chave de leitura para a história das religiões, baseada não em revelações divinas, mas em traumas humanos.


Referência: 

FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Tremedal - BA, 30 de julho de 2025.

terça-feira, 29 de julho de 2025

A ALMA (DE ANIMA) SEGUNDO ARISTÓTELES

 

Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

Por que você está vivo? O que faz de você um ser consciente e racional? Para Aristóteles, a resposta está naquilo que os antigos chamavam de "alma", mas não do jeito que você imagina.

A reflexão sobre a alma ocupa um lugar central na filosofia aristotélica. Em oposição à visão platônica e a cristã (que se embebedou desta fonte) que concebem a alma como uma substância separada e eterna, Aristóteles propõe uma abordagem mais concreta e orgânica. Para ele, a alma não é algo que o corpo possui como um acessório, mas sim o princípio que dá vida ao corpo, sua forma substancial. A alma, portanto, é o que explica o funcionamento dos seres vivos, desde os vegetais até os seres humanos.

No tratado De Anima, Aristóteles define a alma como "a forma de um corpo natural que possui a vida em potência" (ARISTÓTELES, 2002, p. 57). A alma é o que torna possível que um corpo seja vivo, funcionando como o princípio vital que anima o organismo. Como ele afirma:

A alma é, pois, substância no sentido da forma de um corpo natural que tem a vida em potência. [...] A alma não é separável do corpo, ou pelo menos algumas partes dela não são, se é que ela tem partes; pois a atualidade de algumas de suas partes pertence necessariamente ao corpo (ARISTÓTELES, 2002, p. 57).

Essa citação mostra que Aristóteles recusa a separação radical entre corpo e alma. Ele reconhece que há aspectos da alma que não podem ser compreendidos sem referência ao corpo, como as funções nutritiva e sensitiva. Assim, ele propõe uma teoria hilemórfica do ser vivo: todo ente composto de matéria (hylé) e forma (morphé), sendo a alma a forma que atualiza a matéria corpórea viva.

A alma, segundo Aristóteles, possui três funções principais: a nutritiva (própria dos vegetais), a sensitiva (presente nos animais) e a racional (exclusiva dos seres humanos). Essa hierarquização mostra um claro paralelismo com a sua teoria dos seres vivos, que varia conforme o grau de complexidade. Nos humanos, a alma racional é a mais elevada, sendo a única capaz de pensamento abstrato e conhecimento universal.

Entre as partes da alma, algumas são irracionais, e outras, dotadas de razão. Entre as irracionais, uma parece comum a todos os seres vivos — vegetais inclusive —, e é responsável pela nutrição e crescimento (ARISTÓTELES, 2002, p. 71).

A função nutritiva garante a sobrevivência, a sensitiva permite a percepção e o movimento, e a racional proporciona a reflexão e o conhecimento. A alma racional, no entanto, possui uma peculiaridade: é a única que pode existir separada do corpo, o que faz Aristóteles admitir certa exceção à sua própria regra da inseparabilidade entre alma e corpo. Em um trecho enigmático e objeto de amplas interpretações na história da filosofia, ele escreve:

O intelecto parece ser uma substância que existe de fato, e não se mistura com o corpo, sendo impassível e separado, pois é o que é por si mesmo. [...] Não se pode dizer que o intelecto é esta ou aquela coisa antes de pensar, e por isso não é, em ato, nenhum ser determinado antes de pensar, mas apenas em potência (ARISTÓTELES, 2002, p. 129).

Com isso, Aristóteles parece indicar que, diferentemente das demais funções da alma, o intelecto puro (nous) não depende do corpo. É essa a parte que mais se aproxima do imortal, ainda que o estagirita não se comprometa com uma doutrina da imortalidade pessoal clara como a de Platão. A ambiguidade aqui gerou diversas interpretações posteriores, como a dos comentadores árabes (Averróis, Avicena) e a dos escolásticos medievais.

Mas, mesmo neste contexto, fica claro para nós que Aristóteles entende a alma como sendo a forma do corpo vivo, indissociável da matéria na maioria de suas funções, mas com uma exceção possível no caso do intelecto. Sua teoria permite pensar a vida em continuidade com a natureza e compreende a alma não como substância autônoma, mas como princípio organizador. O pensamento aristotélico lança, assim, as bases para uma psicologia filosófica que une biologia e metafísica, corpo e espírito, forma e matéria.

Para efeito didático, deixo abaixo uma imagem que representa os níveis da alma.



Referência:

ARISTÓTELES. Da alma. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 2002. (Os Pensadores)


Tremedal - BA, 29 de julho de 2025.


segunda-feira, 28 de julho de 2025

AS CINCO VIAS DE TOMÁS DE AQUINO PARA PROVAR A EXISTÊNCIA DE DEUS

 


Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

Na história da filosofia e da teologia cristã, poucos nomes têm tanto peso quanto o de Tomás de Aquino. Vivendo no século XIII, o "boi mudo" buscou realizar algo não muito aconselhável para a época, unir a fé cristã a razão filosófica, sobretudo a filosofia de Aristóteles, pensador a quem Tomas de Aquino era "devoto". Uma das partes mais conhecidas de sua obra Suma Teológica é a apresentação das chamadas “cinco vias", isto é, cinco argumentos sob a luz da razão que visam demonstrar a existência de Deus observando o mundo sensível. Diferente de uma fé cega, irracional e mística, Tomas parte da experiência concreta para alcançar uma conclusão metafísica: a existência de um ser supremo e ordenador de todas as coisas. Enfim, pretendo nos próximos comentários elencar e nomear o nome de cada via, fazendo uma breve explicação sobre, mas dando prioridade ao que o próprio Tomas de Aquino escreveu.

A primeira via: O movimento

A primeira via é baseada no movimento, compreendido como a passagem da potência ao ato, exemplo: a semente é uma potência, a árvore com seus frutos é o ato. Tomás observa que tudo que se move é movido por algo, e isso não pode prosseguir ao infinito. Logo, deve haver um primeiro motor imóvel.

Ora, é certo e evidente aos sentidos que algumas coisas se movem. Tudo o que se move é movido por outro. [...] Mas não se pode proceder ao infinito, porque, assim, não haveria motor primeiro, e, portanto, nenhum outro motor, pois os motores intermediários não movem senão por serem movidos pelo primeiro motor. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor que não é movido por outro; e este todos chamam Deus (AQUINO, 2003, p. 40).

Essa primeira prova busca demonstrar que o movimento exige uma causa que esteja fora da cadeia de eventos móveis, ou seja, algo que não receba movimento de outro, mas seja em si mesmo o início de toda a dinâmica do universo. Deus, nesse argumento, é o motor imóvel que fundamenta toda a realidade em movimento.

A segunda via: a causalidade eficiente

A segunda via parte da noção de causa eficiente. Nada pode ser causa de si mesmo, pois isso implicaria existir antes de si próprio. Como não se pode regressar ao infinito, deve haver uma causa primeira que seja "incausada".

Na ordem das causas eficientes, não se encontra nem se pode encontrar algo que seja causa eficiente de si mesmo, porque então seria anterior a si mesmo, o que é impossível. [...] Ora, suprimir a causa é suprimir o efeito. Se, pois, não existe uma causa eficiente primeira, não haverá causa intermediária, nem causa última, o que é manifestamente falso. [...] Logo, é necessário admitir-se uma causa eficiente primeira; e esta é Deus (AQUINO, 2003, p. 40-41).

Neste argumento percebemos que, sem uma causa primeira, a realidade como a conhecemos não existiria. Ele rejeita a ideia de regressão infinita de causas, pois isso tornaria impossível a existência das causas intermediárias e dos efeitos que delas decorrem. Deus, então, é compreendido como a causa primeira, a origem de tudo o que é causado.

A terceira via: o possível e o necessário

A terceira via se baseia na distinção entre seres possíveis (contingentes) e seres necessários. Os seres que vemos ao nosso redor são contingentes, ou seja, podem existir ou não. Ora, se tudo fosse contingente, em algum momento nada teria existido e, nesse sentido, do nada, nada poderia surgir (Ex nihilo nihil fit). Logo, deve haver um ser necessário, que tenha em si mesmo a razão de sua necessidade.

Vemos que há coisas que podem existir e não existir, pois nascem e perecem, e, portanto, são possíveis. Se tudo pode não existir, então em algum tempo nada existia. Mas se isso fosse verdade, nada existiria agora, pois do nada nada vem. [...] Portanto, nem todos os entes são meramente possíveis, mas é necessário que haja algum ser necessário. [...] E esse ser necessário, que tem em si mesmo a causa de sua necessidade, é o que todos chamam Deus (AQUINO, 2003, p. 41).

Ele mostra nessa via que se tudo fosse contingente, o mundo não teria começado. Algo precisa ter a existência por essência, isto é, ser necessário. Esse ser é Deus, o único que existe necessariamente e do qual todos os outros derivam sua possibilidade de ser.

A quarta via: os graus de perfeição

A quarta via utiliza os graus de perfeição. Tomás observa que há diferentes graus de bondade, verdade, beleza e nobreza nas coisas do mundo. Essa gradação só é compreensível se existir um grau máximo que sirva de parâmetro para os demais.

Entre os seres, há alguns mais e menos bons, verdadeiros, nobres etc. Mas mais e menos se dizem das diversas coisas conforme se aproximam de algo que é o máximo. [...] Logo, existe algo que é verdade, bondade e nobreza máximas; e, por conseguinte, o ser máximo. Ora, o que é máximo em um gênero é a causa de todos os que pertencem a esse gênero. Logo, existe algo que é causa do ser, da bondade e de toda perfeição em todos os seres; e isso é o que chamamos Deus (AQUINO, 2003, p. 41-42).

Com isso, Tomás afirma que todo grau de perfeição remete a um padrão absoluto. Se há coisas mais ou menos boas, isso só é possível porque existe algo que é a própria bondade, o próprio ser pleno. Deus, nesse caso, é o ser absolutamente perfeito que serve de medida e origem de toda perfeição no mundo.

A quinta e última via: o governo das coisas

Esta última via, antes de citá-la, devo ressaltar que ela é de base teológica, uma vez que ela parte da observação de que os seres irracionais agem com finalidade, como se fossem guiados por um propósito. Isso indica que há uma inteligência por trás da ordem da natureza.

Vemos que as coisas que carecem de conhecimento, como os corpos naturais, operam por um fim. E isso se mostra em que sempre ou quase sempre agem do mesmo modo para alcançar o que é ótimo. [...] Ora, aquilo que não tem conhecimento não tende a um fim senão dirigido por algum ser conhecedor e inteligente, como a flecha é dirigida pelo arqueiro. Logo, existe um ser inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas a um fim; e esse ser é o que chamamos Deus (AQUINO, 2003, p. 42).

Aqui, Tomás defende que, se a natureza segue leis e finalidades, mesmo sem consciência, então essa ordem deve provir de uma mente inteligente. Assim como uma flecha não acerta o alvo sem um arqueiro, a natureza não se dirige a fins sem um princípio racional que a governe. Deus é, portanto, o grande ordenador do cosmos.

Bom, Tomás identifica em cada um desses aspectos um ponto de partida para inferir a existência de um ser necessário, perfeito, eterno e inteligente: o que chamamos Deus. Essa discussão é muito importante, uma vez que o diálogo entre fé e razão foi motivo de muitas discussões e muitas vezes consideradas heresias por parte da igreja no período medieval, sobretudo as reflexões tomistas que são de base aristotélica, um autor pagão. Enfim, o objetivo do texto, é mostrar ao leitores de fé que é possível crer de maneira racional e não apenas através de um sentimento cego.

Tremedal - BA, 28 de julho de 2025.


Referência:

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Tradução de Luiz João Baraúna. Volume I – Parte I, Questão 2, Artigo 3. São Paulo: Loyola, 2003.

domingo, 27 de julho de 2025

A ESSÊNCIA DO CRISTIANISMO SEGUNDO FEUERBACH

 


Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

No Culto de hoje:

Imagine por um instante que Deus não criou o homem.
Agora, também por um instante imagine que foi o homem quem criou Deus.

NÃO! Isso não foi uma blasfêmia, isto é Filosofia. E mais especificamente, é Ludwig Feuerbach em seu estado mais puro.

Feuerbach, foi um filósofo alemão que se atreveu a colocar o divino sob o microscópio da razão humana. propôs uma ideia que até hoje, ressoa como um trovão surdo no fundo da alma cristã: "Deus é apenas a essência do homem projetada para fora de si mesmo."

Segundo Feuerbach, a religião não é a revelação de um ser supremo, mas a exteriorização dos desejos, sentimentos e ideais humanos. Em outras palavras, o que chamamos de Deus é um espelho onde a humanidade projeta aquilo que tem de mais nobre: amor, vontade, razão e que, paradoxalmente deixa de reconhecer como sendo seus atributos.

Desde o primeiro capítulo de A Essência do Cristianismo, Feuerbach finca sua tese: o que diferencia o homem do animal é a consciência “os animais não têm religião” (FEUERBACH, 2013, p. 35). Mas essa consciência é mais do que saber que existimos: ela é a capacidade de nos vermos no outro, de reconhecer nossa essência como parte de um gênero comum. E essa exatamente essa consciência que segundo ele, a religião distorce. A religião sequestra nossos predicados mais belos, o amor, a razão, a vontade e os projeta num ser metafísico, intangível, para depois dizer: “Não, isso não é seu. Isso é de Deus". Mas como recusar o que nos é próprio? “O homem é para si ao mesmo tempo eu e tu; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto” (FEUERBACH, 2013, p. 36).

O filósofo afirma com firmeza: “A consciência do infinito não é nada mais do que a consciência da infinitude da consciência” (FEUERBACH, 2013, p. 36). Ou seja, não há nada além daquilo que a própria consciência humana possa imaginar. Mais ainda: os sentimentos religiosos mais profundos não são gritos da alma por um outro mundo, mas ecos do nosso próprio mundo interior. “O sentimento é ateu” (FEUERBACH, 2013 p. 43), no sentido de que ele não reconhece nenhum objeto externo como fonte, ele é completo em si. Assim, Deus não seria uma entidade objetiva, mas o reflexo dos nossos anseios mais íntimos: a necessidade de sentido, de proteção, de eternidade.

Para ele, a teologia cristã é uma forma sutil (e eficaz) de alienação: ela toma os atributos essenciais do homem e os exila num céu abstrato. “O homem transporta primeiramente a sua essência para fora de si, antes de encontrá-la dentro de si (FEUERBACH, 2013, p. 45). Para que o leitor perceba, é como se o ser humano tivesse medo da própria grandeza, então a entrega a uma divindade. Cutucando mais uma vez, essa ideia de projetar fora o que há de melhor dentro de nós é um mecanismo poderoso. Afinal, é mais fácil adorar do que realizar. Mais simples temer a Deus do que se responsabilizar pela própria liberdade. Como já dizia Sartre, séculos depois: estamos condenados à liberdade. 

Outro golpe duro que o filósofo alemão desfere contra a teologia é o resgate da natureza. Na tradição cristã, a natureza (na linguagem dos protestantes: o mundo) foi muitas vezes rebaixada, vista como algo corrupto, inferior ao espírito. Mas Feuerbach vira a mesa: se existe algo do qual realmente dependemos, é dela. “Se algo deseja se caracterizar enquanto inseparável do humano... isso deveria ser a natureza e não um ser metafísico” (FEUERBACH, 2013, p. 43). A natureza, diz ele, é objetiva, concreta, finita e é exatamente isso que a torna tão temida pelas religiões. A religião quer vencer a morte, abolir o corpo, transcendê-lo. "Mas, ao fazer isso, esquece que é o corpo que ama, deseja, sofre e pensa. Somente o túmulo do homem é o berço dos deuses” (FEUERBACH, 2013, p. 47).  A religião nasce do medo da morte, da dor, da impotência. E é por isso que Feuerbach não odeia a religião: ele a compreende. Mas nos exorta a superá-la.

Para finalizar, Feuerbach não quer nos fazer ateus no sentido vulgar do termo. Ele quer algo mais radical: que nos tornemos conscientes de que somos deuses para nós mesmos.

“A oposição entre o divino e o humano é apenas ilusória [...] o objeto e o conteúdo da religião cristã é inteiramente humano” 


Referências:

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Trad. José da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2013.

Tremedal - BA, 27 de julho de 2025.

sábado, 26 de julho de 2025

SANTO AGOSTINHO E O MISTÉRIO DA TRINDADE

 


Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

A doutrina da Trindade é, sem dúvida, uma das mais complexas e fundamentais do cristianismo. Entre todos os pensadores cristãos da Antiguidade, Santo Agostinho foi quem fundamentou e formulou da melhor maneira, a ponto de influenciar todo o Ocidente. Sua obra A Trindade (De Trinitate), escrita ao longo de dezesseis anos (entre 400 e 416), representa o ápice de sua maturidade teológica e filosófica. Nela, Santo Agostinho não apenas reafirma a fé cristã na Trindade, mas também a explora com rigor intelectual, articulando fé e razão de uma maneira admirável até para aqueles que não são religiosos como é o meu caso.

Santo Agostinho parte do pressuposto de que Deus é um só, mas trino em pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Este mistério, podemos dizer incompreensível em sua totalidade, é, para ele, digno de investigação, pois a fé que crê deve buscar entender. Essa é uma das ideias centrais de sua teologia: praecedit fides, sequitur intellectus (A fé precede o entendimento). Como ele afirma logo no início de sua obra: “A fé busca, o intelecto encontra, mas este deve ser puro, pelo amor, da curiosidade, e a fé deve ser verdadeira, por causa da inteligência” (AGOSTINHO, 2011, I, 8, p. 68).

A obra se divide em duas partes: os primeiros sete livros possuem forte fundamentação bíblica e visam afirmar a unidade de Deus nas Escrituras. Já os livros de VIII a XV assumem um caráter mais filosófico e especulativo, no qual Santo Agostinho se volta ao interior da alma humana para encontrar analogias da Trindade. A busca por tais analogias, porém, não pretendem explicar a Trindade de forma exaustiva. Ao contrário, o objetivo é conduzir o “fiel” à contemplação do mistério divino e fortalecer sua fé. Portanto, eu julgo que a referida obra deveria ter por parte dos homens de fé, uma grande visitação.

Continuando no contexto da Trindade, Santo Agostinho entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são distintos entre si, mas coiguais e coeternos, compartilhando a mesma essência divina. Como ele mesmo escreve:

Assim, o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. Não são três deuses, porém um só Deus. Do mesmo modo, o Pai é grande, o Filho é grande, o Espírito Santo é grande. E não são três grandes, porém um só grande. [...] Cada um deles é Deus, cada um deles é grande; contudo, não por serem três, mas por serem um só Deus é que são grandes e são Deus. (AGOSTINHO, 2011, V, 9, p. 201).

Com esse cuidado de linguagem e teologia, Santo Agostinho evita dois grandes erros: o triteísmo (que veria três deuses) e o modalismo (que nega a distinção entre as pessoas divinas). Sua doutrina, ao contrário, defende que as pessoas são distintas pelas relações que possuem entre si: o Pai gera, o Filho é gerado e o Espírito Santo procede. Na perspectiva agostiniana, advirto o leitor, essas relações são reais, eternas e constituem o ser de cada pessoa da Trindade.

É especialmente inovadora sua concepção de que as pessoas divinas são relações subsistentes. Contra a lógica aristotélica que reduzia tudo às categorias de substância e acidente, Agostinho apresenta a relação como categoria fundamental para entender a distinção na unidade divina. Isso lhe permite afirmar com profundidade:

Não há, pois, senão um bem simples e, consequentemente, senão um bem imutável – Deus. E este bem criou todos os bens que, não sendo simples, são, portanto, mutáveis. Digo, precisamente, criou, isto é, fez, e não gerou. É que o que é gerado de um ser simples é simples como ele e é o mesmo que aquele que o gerou. A estes dois seres chamamos Pai e Filho, e um e outro com o seu Espírito Santo são um só Deus. [...] Disse que é distinto, mas não é outra coisa, porque também Ele é igualmente simples, igualmente imutável e coeterno. E esta Trindade é um só Deus e não deixa de ser simples por ser Trindade. (AGOSTINHO, 2011, XV, 7, p. 511).

Essa formulação não apenas responde aos desafios da época, como o arianismo, que negava a divindade do Filho, como também estabelece a base da doutrina trinitária para toda a tradição ocidental da qual os cristãos, em sua grande parte seguem hoje. A originalidade de Santo Agostinho também aparece na forma como entende o Espírito Santo: como o amor que une o Pai e o Filho. Isso torna o Espírito o elo da comunhão entre as duas outras pessoas, e por isso ele é chamado “Dom” (donum), expressão que remete à sua função de outorgar a graça divina.

Santo Agostinho, ao afirmar a “processão” do Espírito do Pai e do Filho (doutrina conhecida como filioque), também rompe com certas formulações do Oriente, que viam o Espírito como procedente apenas do Pai. Para ele, não se trata de subordinar o Espírito, mas de expressar a unidade inseparável da operação divina. O Espírito é, portanto, a personificação do amor entre Pai e Filho, e essa relação é também eterna e substancial.

Todo esse esforço intelectual, porém, não afasta Santo Agostinho de uma atitude de humildade e oração. Ele escreve A Trindade não apenas como teólogo, mas como homem em busca de Deus. Suas investigações são constantemente entrecortadas por súplicas e confissões de sua limitação diante do mistério, o que torna a obra ainda mais fascinante, ele, enquanto escreve a obra, pede a Deus revelações para tal mistério, por isso, talvez tenha demorado tantos anos para sua conclusão. O saber, para Santo Agostinho, não tem fim em si mesmo, mas é um meio de amar mais profundamente a Deus, aquele que está além de toda compreensão, mas que se deixa encontrar pelo coração que crê.


Tremedal - BA, 26 de julho de 2025.

Referências:

AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Tradução de Maria das Graças Souza. São Paulo: Paulus, 2011. (Coleção Patrística, v. 33).


sexta-feira, 25 de julho de 2025

Sobre a Felicidade em Aristóteles

 


Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

O que é a felicidade? Sem dúvidas, esta é uma pergunta que há muito tempo paira na mente humana. Mas o que de fato esta questão implica não é somente a definição da referida mas: Como alcançá-la?

Neste texto, faço breves considerações sobre a perspectiva aristotélica em torno dessa problemática.

Aristóteles parte da convicção de que todo ser humano realiza suas ações em busca de algum bem, mas que existe um bem final, desejado por si mesmo, e não como meio para outra coisa. Esse bem supremo é a eudaimonia, que, segundo ele, melhor corresponde a uma vida bem vivida, plena e virtuosa. Diferentemente de modos de vida voltados ao prazer ou à honra e ao reconhecimento público, estratégias que visam a ganhos temporários ou externos, a eudaimonia é autossuficiente, completa em si mesma e baseada na prática constante da virtude. Isso, por óbvio, é uma questão tratada no livro Ética a Nicômaco, deixo aqui algumas palavras do próprio autor: 

Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda    escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem    é aquilo a que todas as coisas tendem. Mas observa-se entre os fins uma certa diferença:    alguns são atividades, outros são produtos distintos das atividades que os produzem. Onde existem fins distintos das ações, são eles por natureza mais excelentes do que estas. (ARISTOTELES, 1991, p.09).

Novamente, todas as ações humanas visam um bem, mas estas ações são meios para o alcance do bem último, aquele que basta em si mesmo, isto é, a felicidade. Alguns exemplos citados por Aristóteles que são meios: a arte médica é meio para a saúde, o da construção naval é o navio, o da estratégia é a vitória e o da economia é a riqueza. Ora, todos estes exemplos, no final das contas buscam o alcance do bem último, supremo: a felicidade. Ou você teria uma resposta para a pergunta: Ser feliz para que?

A virtude, na visão aristotélica, representa excelência moral ou intelectual, e encontra seu lugar no chamado “caminho do meio” o equilíbrio entre extremos viciosos. Por exemplo, a coragem é situada entre a temeridade, que é excesso, e a covardia, que é deficiência; o mesmo princípio se aplica à generosidade, à ambição ou à temperança. A prática da virtude não é algo natural ou inato: ela se firma por meio de hábitos e escolhas repetidas, apoiadas pela capacidade humana de deliberar corretamente, o que Aristóteles chama de phronesis, ou prudência prática.

A razão desempenha papel central nesse percurso. O ser humano se distingue dos demais seres por sua natureza racional, e uma vida feliz é aquela que exerce a racionalidade de forma plena. Citando mais uma vez a Ética a Nicômaco, No Livro X, Aristóteles propõe que a vida contemplativa, isto é, uma existência dedicada à busca do conhecimento, da verdade e da sabedoria, é a forma de viver mais elevada e duradoura. Nesse modo de vida, não se busca o prazer sensorial, mas se cultiva uma atividade da alma conformada à virtude em sua forma mais pura.

Entretanto, Aristóteles não ignora os bens externos como saúde, riqueza, amizade, reputação que, ainda que secundários, são reconhecidos como condições que ajudam a manter a eudaimonia. Ele ressalta que ninguém pode ser plenamente feliz se estiver isolado ou carente de relações sociais: o homem, para ele, é um “animal político”, e a vida em comunidade fornece o terreno em que se cultivam as virtudes. A amizade, em particular, é considerada indispensável, ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo que possuísse todos os outros bens.

A eudaimonia, então, não é uma condição estática ou um estado emocional, mas como afirma Aristóteles, “a felicidade é uma atividade da alma de acordo com a virtude perfeita”. Esse é um esforço permanente, que exige do ser humano, maturidade, bom caráter e participação na vida da polis. A educação tem papel essencial nesse processo, pois os hábitos virtuosos devem ser cultivados desde cedo para que o caráter se firme e se torne resistente às adversidades.

Embora Aristóteles defenda que a vida contemplativa é a mais alta expressão da eudaimonia, ele entende que essa forma de viver nem sempre é acessível a todos, por depender de disponibilidade de tempo e circunstâncias favoráveis. Porém, ele mostra que a prática da virtude, mesmo em contextos comuns, pode proporcionar uma vida genuinamente feliz, pois envolve agir bem, deliberar bem, tocar o mundo por meio de ações éticas e relacionamentos virtuosos. 

Nesse sentido, a felicidade segundo Aristóteles é muito mais do que um estado efêmero: é o executar contínuo e virtuoso da razão em ações equilibradas, construídas na convivência com outros e na reflexão moral constante. 

Tremedal-BA, 25 de julho de 2025.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O MESTRE - SANTO AGOSTINHO


 Por: Cleiton Jesus Matos
 Discente | Filosofia | UESB

Antes de direcionar o leitor ao texto, faço uma breve nota biográfica de Santo Agostinho:

Um dos maiores pensadores do cristianismo e da filosofia ocidental, nasceu em 354 d.C., na cidade de Tagaste, no norte da África. Ele teve uma juventude marcada por inquietações espirituais e morais, passando por diversas correntes filosóficas e religiosas, como o maniqueísmo e o ceticismo, até sua conversão ao cristianismo, influenciado por sua mãe Santa Mônica e por Santo Ambrósio. Ordenado bispo de Hipona, dedicou sua vida à reflexão sobre Deus, a alma e o conhecimento. Sua filosofia é uma síntese entre o pensamento clássico, sobretudo platônico, e a fé cristã. Nesse contexto de busca pela verdade interior e pela iluminação divina, sua obra O Mestre a qual falarei hoje, apresenta um diálogo profundo sobre a linguagem, o ensino e a verdadeira origem do saber, temas que revelam seu esforço em compreender como o homem pode ser conduzido à verdade que habita em Deus. Enfim;

Santo Agostinho apresenta um diálogo entre professor e aluno, refletindo temas profundos sobre a natureza do conhecimento, da sabedoria e do ensino. A estrutura da obra é um diálogo, formato que permite a Santo Agostinho examinar em profundidade os conceitos filosóficos e educativos que dizem respeito ao pensamento. Através de uma discussão entre o professor, que representa a figura da sabedoria e da autoridade, e o aluno, que busca aprender e compreender, Agostinho descobre a relação entre ensinar e aprender e como “adquirir o verdadeiro conhecimento”.

No diálogo, ele aborda a importância da formação moral e intelectual do indivíduo, enfatizando a necessidade de orientação adequada para o alcance da verdade. O professor, ao longo do trabalho, não apenas transmite conhecimento, mas também instrui o aluno sobre a importância da virtude e da prática moral como fundamentos da verdadeira sabedoria. 

Além disso, ainda no início da obra, Santo Agostinho logo discute a relação entre signos e significados, propondo que os signos são instrumentos que nos ajudam a compreender a realidade. Ele diferencia entre os signos que têm um significado claro e os que exigem interpretação. Agostinho argumenta que o uso correto dos signos é essencial para a educação e a comunicação, pois eles nos permitem transmitir ideias e sentimentos, porém, para ele, o conhecimento das coisas significadas vale mais do que os seus signos:

 IX,25. Ag Quero, portanto, que compreendes que as coisas significadas devem ser tidas com maior apreço que os sinais, pois o que existe em função de outra coisa deve ter menor apreço do que aquilo em função do qual existe; salvo que julgues diferentemente. (AGOSTINHO, 2008, p, 394).

Segundo o Bispo de Hipona, uma das principais lições de um mestre com seu discípulo gira em torno da importância do aprendizado contínuo e da busca pela sabedoria. O mestre destaca que o conhecimento não é apenas uma acumulação de informações, mas uma experiência que deve ser vivida e refletida. Ele ensina que o verdadeiro entendimento vem da prática e da aplicação do que se aprende, além de trazer a tona a importância da humildade e da abertura para novas ideias e perspectivas. 

Levando para o campo pessoal, tenho o entendimento de que sem a humildade é improvável a busca pela sabedoria, uma vez que o sujeito, que entende-se como possuidor de todas as verdades e da sabedoria não encontra mais, motivos para continuar, a humildade e a confissão da ignorância é peça chave para o avanço da reflexão e do conhecimento.

Nesse sentido, Agostinho nos mostra que o verdadeiro saber não é transmitido mecanicamente, mas brota de uma experiência interior iluminada por Deus. Sua visão valoriza não apenas o conteúdo aprendido, mas o caminho da busca, marcado pela humildade, pela reflexão e pelo desejo sincero de compreender. Assim, sua reflexão nos ajuda a lembrar que aprender é, antes de tudo, um movimento da alma em direção à verdade.

Tremedal-BA, 24 de julho de 2025.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO - FREUD


 

Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB


Em O Mal-Estar na Civilização, Sigmund Freud apresenta uma análise profunda sobre as tensões entre a individualidade humana e as demandas da civilização. A obra revela como a cultura, enquanto sistema de controle social, impõe restrições aos instintos naturais (pulsões), levando os indivíduos a experimentar um mal-estar psicológico. Essa relação complexa entre a sociedade e a psique humana é estruturada em torno de vários conceitos-chave que ajudam a entender o sofrimento inerente à vida civilizada.

Freud argumenta que a civilização exige a repressão de instintos fundamentais, especialmente os instintos sexuais e agressivos. Essa repressão é necessária para a convivência pacífica, mas gera um conflito interno significativo. O indivíduo, forçado a silenciar suas pulsões naturais, enfrenta um estado de tensão constante entre o desejo e a realidade. Essa luta interna, por sua vez, culmina em sentimento de culpa e ansiedade, manifestados pela internalização das normas sociais que regem a vida em comunidade. A consciência moral, formada por essa repressão, provoca uma sensação de mal-estar que permeia a experiência humana na civilização, nesse sentido ele diz que:

Com metas mais modestas, segue-se o mesmo caminho quando apenas se aspira ao domínio sobre os impulsos. O que então domina são as instâncias psíquicas superiores que se submeteram ao princípio da realidade. Isso não significa de modo algum que se renunciou ao propósito de satisfação; uma certa proteção contra o sofrimento é alcançada pelo fato de a não satisfação dos impulsos mantidos sob sujeição não ser sentida tão dolorosamente como a dos impulsos livres. (FREUD, 2010, P. 68)

Além disso, Freud examina o papel da religião como uma tentativa de lidar com o sofrimento e o desconhecido. Ele vê a religião como uma ilusão reconfortante que, embora ofereça uma forma de consolo frente às ansiedades existenciais, pode limitar o desenvolvimento intelectual e emocional do ser humano. Essa relação ambígua com a religião exemplifica a busca incessante do ser humano por segurança e sentido em meio às frustrações impostas pela cultura e, dentro deste contexto, no capítulo II ele faz a seguinte colocação:

O homem comum não consegue imaginar essa providência de outro modo a não ser na pessoa de um pai grandiosamente elevado. Somente um pai assim é capaz de conhecer as necessidades da criança humana, compadecer-se com suas súplicas, apaziguar-se com os sinais de seu arrependimento. Isso tudo é manifestação infantil, tão alheio à realidade, que se torna doloroso para uma mentalidade humanitária pensar que a grande maioria dos mortais nunca poderá se elevar acima dessa concepção de vida. (FREUD, 2010, p. 58)

A busca por prazer, central na psicologia freudiana, é outra dimensão crucial da análise. Freud sugere que, enquanto o prazer é uma força motriz na vida humana, a civilização frequentemente transforma essa busca em sofrimento. A necessidade de conciliar os desejos individuais com as exigências sociais cria um ambiente de frustração, onde o prazer é frequentemente postergado ou negado. Essa dinâmica revela como a cultura, apesar de oferecer proteção e estrutura, também demanda sacrifícios pessoais, gerando um mal-estar que é, em última análise, uma característica da condição humana.

Por fim, Freud se questiona sobre o futuro da civilização diante dessas tensões. Ele sugere que a saúde da cultura depende da capacidade de encontrar um equilíbrio entre a satisfação das pulsões individuais e as exigências sociais. Essa reflexão revela uma preocupação com a viabilidade da civilização em promover o bem-estar do indivíduo, ao mesmo tempo em que mantém a ordem social.


REFERÊNCIAS
FREUD, S. O mal-estar na cultura, Rio de Janeiro: L&PM Editores, 2010.


Tremedal-BA, 23 de julho de 2025.




terça-feira, 22 de julho de 2025

A Rebelião dos Fracos: A Crítica de Nietzsche à Moral Tradicional



Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

Genealogia da Moral – Uma polêmica de Friedrich Nietzsche, é sem dúvidas uma obra essencial para quem deseja investigar as origens e o desenvolvimento dos valores morais na civilização ocidental. Nietzsche propõe uma crítica contundente à moralidade tradicional, em particular à moral cristã, considera por ele como uma construção baseada no ressentimento e na negação da vida. 

Uma das principais contribuições do filósofo alemão é a diferenciação entre a moral dos senhores e a moral dos escravos. A primeira, associada à nobreza e aos indivíduos fortes, valoriza a afirmação da vida, a força e a vitalidade. Em contrapartida, a moral dos escravos emerge como uma resposta dos oprimidos que desenvolvem valores como humildade, compaixão e submissão. Essa dualidade revela uma luta intrínseca entre as forças que afirmam a vida e aquelas que a negam, evidenciando a complexidade das relações sociais e as dinâmicas de poder que moldam a moralidade. Nesse sentido, na primeira dissertação acerca do “Bom e Mau” ou “Bom e Ruim”, o filósofo da suspeita escreve:

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que pensa por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um "fora", um "outro", um "não-eu" - e este Não é seu ato criador. (NIETZSCHE, 2008, p. 28-29).

Nietzsche também se debruça sobre a origem da culpa e do pecado, traçando suas raízes até relações econômicas de dívida. Ele argumenta que a noção de culpa foi transformada pela moral cristã, convertendo instintos naturais em sentimentos de remorso e repressão. Essa transformação resulta em uma moralidade que nega a essência vital do ser humano, criando uma profunda desconexão entre o indivíduo e suas pulsões naturais.

Além disso, o ressentimento é apresentado como um motor central da moralidade dos escravos. Aqueles que se sentem oprimidos criam valores que exaltam suas virtudes em oposição à força dos senhores. Esse ressentimento não apenas molda a moralidade, mas também perpetua um ciclo de negação e fraqueza que limita o potencial humano, nesse sentido Nietzsche também escreve:

O sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina "homem", reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres e seus ideais, como autênticos instrumentos da cultura [...] (NIETZSCHE, 2008, p. 33-34).

Por fim, o “profeta” propõe a necessidade urgente de reavaliar e superar os valores morais tradicionais. Ele defende a criação de uma nova moralidade que celebre a vida, a criatividade e a força individual. Essa nova abordagem moral é essencial para o desenvolvimento humano e a superação das limitações impostas por uma moralidade que, em última análise, promove a fraqueza em vez da potência. Nietzsche nos convida a uma reflexão crítica sobre os valores que fundamentam nossas vidas, instigando uma busca por uma ética que afirme a vida e a força do indivíduo. Suas ideias continuam a ressoar desafiando as convenções e inspirando a busca por uma moralidade mais autêntica e vital.

Tremedal-BA, 22 de julho de 2025.


REFERÊNCIAS:
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.




segunda-feira, 21 de julho de 2025

"DO INCONVENIENTE DE TER NASCIDO" DE EMIL CIORAN - BREVES CONSIDERAÇÕES



Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB


Neste dia nublado de segunda-feira, convido o leitor(a) a refletir sobre a condição humana: 

A visão filosófica de Emil Cioran sobre a vida é predominantemente negativa, considerando-a um fardo repleto de dor e sofrimento, onde o nascimento é visto como um crime. Ele acredita que a morte é um alívio e um bem, representando a libertação do tormento da existência. Para Cioran, a vida é um estado contínuo de pesadelo, enquanto a morte oferece a possibilidade de escapar desse sofrimento. 

Nesse sentido, fazendo uma “recordação” dos amigos que morreram, o filósofo romeno, escreve o seguinte no livro o inconveniente de ter nascido: “Penso em inúmeros amigos que já não estão vivos, e apiedo-me deles. Porém, não há assim tanto motivo para os lamentar, pois eles resolveram todos os seus problemas, começando pelo da morte. ” (CIORAN, 2010, p. 21). 

Quando ele diz que "não há assim tanto motivo para os lamentar", isso revela uma perspectiva resignada, quase cínica, sobre a condição humana. Para Cioran, a morte, longe de ser um fim trágico, é a solução definitiva para todos os dilemas existenciais, especialmente o próprio fardo de estar vivo e consciente.

Ao longo do livro, Cioran reflete sobre a solidão e a alienação do ser humano, ressaltando o desajuste entre o indivíduo e o universo. Ele vê as aspirações humanas: amor, progresso, arte e religião como tentativas inúteis de preencher o vazio existencial. Para Cioran, a busca por significado é uma ilusão, e a única postura possível é aceitar o absurdo da vida com ironia e de acordo com isso ele escreve o seguinte aforismo:

Ao longo dos séculos, o homem fez tudo o que estava ao seu alcance para acreditar, andou de dogma em dogma, de ilusão em ilusão, e consagrou muito pouco tempo às dúvidas, breves intervalos entre os seus períodos de cegueira. A bem dizer, não se tratava de dúvidas, mas sim de pausas, momentos de descanso, que se sucediam às fadigas da fé, de qualquer fé. (CIORAN, 2010, p. 95).

Nesse aforismo, percebemos uma crítica incisiva de Cioran sobre à tendência humana de buscar certezas, mesmo às custas da razão ou da lucidez. Segundo ele, a história da humanidade é marcada por uma peregrinação de crença em crença, onde dogmas e ilusões são adotados para fornecer um sentido à existência. Contudo, esses momentos de fé são movidos mais por uma necessidade emocional do que por uma busca genuína pela verdade.

Cioran enfatiza que o homem dedica pouco tempo às dúvidas, pois duvidar exige coragem para confrontar o vazio e o incerto. Os momentos de ceticismo, descritos como "pausas" ou "descansos", não são necessariamente reflexões profundas, mas apenas intervalos entre as exaustivas investidas em novas certezas. A dúvida, em vez de ser um estado contínuo e produtivo, torna-se apenas um alívio temporário antes que o homem volte a se agarrar a outra crença.

Nesse sentido, a frase evidencia o paradoxo da condição humana: por um lado, buscamos sentido em dogmas e ilusões; por outro, somos incapazes de suportar por muito tempo o peso da dúvida radical. Cioran não apenas questiona a validade das crenças humanas, mas também sugere que a nossa insistência nelas é uma forma de cegueira voluntária, um afastamento do confronto honesto com o absurdo e a complexidade da existência.

Em síntese, podemos dizer que a filosofia de Emil Cioran nos confronta com uma visão profundamente crítica e desafiadora da existência humana. Para ele, a vida é um ciclo de ilusões e tormentos, onde o nascimento é uma imposição cruel e a morte, uma libertação inevitável. Sua análise da busca humana por significado revela um paradoxo intrínseco: somos atraídos pelas certezas dos dogmas e crenças, mas raramente enfrentamos a dúvida com coragem e profundidade.

Cioran destaca o vazio das aspirações humanas e a fragilidade de nossa condição, convidando-nos a aceitar a vida como um estado de absurdo e transitoriedade. Longe de oferecer consolo, ele nos desafia a encarar a existência com ironia e lucidez, reconhecendo que as respostas que buscamos frequentemente não passam de paliativos para uma verdade incômoda: a de que a vida, em última análise, não tem um propósito intrínseco. Essa postura filosófica, embora sombria, serve como um convite à reflexão e ao confronto honesto com os limites da condição humana.

Tremedal-BA, 21 de julho de 2025


REFERÊNCIAS

E. M. CIORAN. Do inconveniente de ter nascido, Lisboa: Livraria Letra Livre, 2010.


domingo, 20 de julho de 2025

A ESTÉTICA DO ORGANISMO EM SANTO TOMÁS DE AQUINO: UMA LEITURA A PARTIR DE UMBERTO ECO



Por:
Cleiton Jesus Matos
Discente |  Filosofia | UESB

Introdução

A estética medieval, especialmente a de Santo Tomás de Aquino, apresenta uma visão da beleza profundamente enraizada em uma metafísica do ser, em que a beleza não é entendida apenas como um fenômeno sensível, mas como um reflexo da ordem cósmica e divina. Segundo Umberto Eco (2010), essa concepção estética está centrada na relação entre forma e substância, através da qual a forma, como princípio inteligível, organiza e torna reconhecível a substância. A beleza, então, surge da conformidade entre esses dois aspectos, permitindo que o intelecto compreenda a essência do ser e reconheça sua harmonia interna. Nesse contexto, a estética do organismo, tal como proposta por Aquino, transcende uma mera apreciação sensorial, conectando-se à ideia de um mundo ordenado por Deus, no qual a beleza reflete a perfeição do ser e a coerência cósmica.

Para Santo Tomás, destaca o filósofo italiano (2010), a beleza está atrelada a três condições essenciais: proportio, integritas e claritas. A proporção (proportio) é o primeiro princípio a ser explorado, e, segundo Eco, ela é a chave para entender a harmonia interna dos seres, que não só se manifesta nas partes de um organismo, mas também ressoa na ordem cósmica universal. Essa proporção não é apenas uma preocupação estética, mas também uma manifestação da racionalidade divina, que estrutura o mundo em níveis infinitos de harmonia.

Já a integridade (integritas) aponta para a perfeição do ente, lugar onde a beleza surge quando um ser está completo, sem falhas em sua essência. Juntas, essas duas características formam um alicerce que permite compreender a beleza como uma expressão não apenas sensorial, mas espiritual e intelectual, refletindo a ordem de Deus no mundo.

Por fim, a claritas, ou luminosidade da forma, torna a essência do ser evidente ao intelecto, permitindo que o belo seja não apenas algo sensorial, mas também um reflexo da verdade inteligível.

Forma e substância

Na perspectiva tomista, destaca Eco (2010), a beleza não se reduz a uma aparência superficial, mas brota da conformidade entre forma e substância. A forma, entendida como o princípio inteligível de que estrutura a matéria, é aquilo que torna a substância reconhecível e ordenada, permitindo que o intelecto apreenda a sua beleza. Assim, a estética do organismo em Tomás de Aquino está enraizada em uma metafísica do ser, em que a forma revela a inteligibilidade da substância e permite a manifestação do belo como algo que possui coerência interna, proporção e claridade.

Eco enfatiza que, para os medievais, especialmente para Aquino, o belo se relaciona diretamente com a perfeição do ser. Um objeto é belo não apenas por causar prazer aos sentidos, mas porque sua forma expressa plenamente sua essência, isto é, sua substância. A estética do organismo, então, não é decorativa, mas estrutural: a beleza se dá quando há uma ordem intrínseca, uma adequação entre o que a coisa é e como ela aparece. Essa visão aponta para um entendimento ontológico da beleza, e o organismo, enquanto unidade viva e ordenada, torna-se modelo para pensar a harmonia estética como reflexo da ordem cósmica criada por Deus.

Proportio e Integritas

Eco (2010) destaca que, para Santo Tomás de Aquino, a beleza se manifesta quando três condições estão presentes: proportio, integritas e claritas. A proportio refere- se à justa relação entre as partes de um ser, ou seja, à harmonia interna que o torna ordenado e inteligível. Um organismo é belo quando suas partes mantêm uma relação equilibrada e funcional, evidenciando uma unidade viva e coerente. Essa noção, herdada da tradição pitagórica e platônica, ganha no pensamento tomista uma fundamentação ontológica: a proporção não é só estética, mas expressa a própria racionalidade do ser criado. Diz Eco:

Do lado objetivo, a proporção se realizará em infinitos níveis até alcançar as proporções cósmicas do todo, estabelecendo o Universo como Ordem. Ao expor esta visão, Santo Tomás no fundo repropõe teorias cosmológicas já formuladas, porém as páginas que se desenvolve esta descrição da ordem cósmica não deixam de ter vigor próprio e uma certa originalidade de tom. (ECO, 2010, p. 177).

Com isso, a proportio assume uma função abrangente, não apenas na composição de obras ou corpos, mas na própria estrutura do universo, tornando o belo um reflexo da ordem cósmica divina.

Por sua vez, a integritas diz respeito à totalidade e à perfeição do ente. Um ser é belo quando não lhe falta nenhuma parte necessária para realizar plenamente sua essência. Um organismo mutilado, incompleto ou disforme seria, segundo essa perspectiva, carente de beleza, pois não expressa sua substância de modo completo.

Claritas

Na análise de Umberto Eco, o terceiro elemento da tríade estética tomista, claritas, representa o momento em que a forma de um ser resplandece de modo evidente e inteligível. Mais do que um simples brilho sensível, a claritas é a expressão da essência tornada visível, uma espécie de iluminação interior que revela a verdade da coisa. Para Santo Tomás de Aquino, a beleza não é apenas percebida por uma harmonia externa, mas também pela capacidade da forma de se manifestar com nitidez, de modo a tornar-se objeto de contemplação intelectual e espiritual.

Eco enfatiza que a claritas está profundamente ligada à tradição neoplatônica, especialmente à ideia de que toda forma bela possui um caráter luminoso, como se uma luz intelectual emanasse da estrutura ordenada do ser. Ele aponta: "A claritas é ontologicamente clareza em si e torna-se clareza para nós, clareza estética, quando uma visão se especifica, ao se lançar sobre ela.” (ECO, 2010, p. 184). Assim, a beleza deixa de ser apenas um dado sensorial e passa a ser um sinal da inteligibilidade e da presença de sentido no mundo criado. Ver é, portanto, compreender; e compreender é intuir, na forma, uma presença que a ultrapassa, isto é, o reflexo do logos divino.

A claritas, nesse contexto, atua como ponto culminante da estética do organismo, pois é o que permite à forma ser não apenas estruturada (pela proportio) e completa (pela integritas), mas também transparente à sua verdade ontológica. A forma bela brilha porque está plenamente em ato, e esse brilho não é meramente físico, mas simbólico e espiritual. Em última instância, a claritas é aquilo que conecta o visível ao invisível, a estrutura do ser à luz da razão divina, revelando a dimensão teológica da beleza segundo Tomás de Aquino, tal como Eco a interpreta com precisão e profundidade.

Considerações finais

O estudo da estética medieval, sob a ótica de Santo Tomás de Aquino destacado por Umberto Eco, revela uma compreensão da beleza que ultrapassa a superficialidade dos sentidos e se enraíza em uma metafísica do ser. A visão tomista propõe que a beleza é uma manifestação da perfeição do ser, refletindo a harmonia entre forma e substância, e estando intimamente ligada à ordem cósmica divina. Através das três condições essenciais — proportio, integritas e claritas, Tomás de Aquino estabelece que a verdadeira beleza surge da totalidade do ser, da justa proporção entre suas partes e da clareza com que sua essência se revela ao intelecto humano.

A proporção se apresenta como a chave para entender a harmonia interna dos seres, ligando a estética ao cosmos e refletindo a racionalidade divina que estrutura o mundo. Já a integridade defende que a beleza só se realiza quando um ser é completo em sua essência, sem falhas ou mutilações. Por fim, a claritas encerra a tríade estética tomista, atribuindo à beleza uma dimensão intelectual e espiritual, na qual a forma, ao resplandecer com clareza, torna-se um sinal da presença divina e do Logos.

Em sua totalidade, a estética de Aquino, mediada pela leitura de Eco, nos oferece uma visão holística da beleza, que não se limita ao plano sensorial, mas atinge a profundidade ontológica e teológica do ser. A beleza, para Tomás de Aquino, é, assim, uma via de acesso à verdade divina, refletindo a perfeição do mundo criado e servindo como elo entre o visível e o invisível. Essa concepção não apenas enriquece a compreensão medieval da estética, mas também proporciona um ponto de reflexão profundo sobre como percebemos e nos relacionamos com o belo no mundo.

Referências

ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Tradução de Mário Sabino. Rio de Janeiro: Record, 2010.




PLOTINO E A TEORIA DAS EMANAÇÕES (PROCESSÕES)

Por: Cleiton Jesus Matos Discente | Filosofia | UESB A filosofia de Plotino, um dos grandes nomes do neoplatonismo, é marcada por uma tentat...