quarta-feira, 30 de julho de 2025

MOISÉS E O MONOTEÍSMO - FREUD

 


Por: Cleiton Jesus Matos
Discente | Filosofia | UESB

Seria Moisés um nobre egípcio?
O sentimento religioso seria uma projeção das relações familiares?

Segundo Freud, Sim!

Em Moisés e o Monoteísmo, Sigmund Freud realiza uma das mais ousadas incursões da psicanálise no campo da religião e da história. Publicado em 1939, este livro provoca não apenas pela sua tese principal, a de que Moisés seria um egípcio e não hebreu, mas também pelo modo como Freud articula religião, trauma e memória coletiva. Unindo arqueologia, psicanálise e crítica da religião, Freud desafia a tradição judaico-cristã e propõe uma releitura da origem do monoteísmo e da constituição do povo judeu como sujeito histórico e psíquico.

A hipótese central da obra é de que Moisés foi um nobre egípcio seguidor do faraó Akhenaton, que havia instaurado o culto monoteísta a Aton, o deus solar. Após a morte do faraó e o colapso da reforma religiosa, Moisés teria liderado um grupo de hebreus, impondo-lhes uma nova religião baseada em um deus único, abstrato e moral. Como afirma o neurologista de Viena: "A minha tese é esta: Moisés foi um egípcio, provavelmente um homem de alta posição, que aderiu à religião monoteísta do faraó Akhenaton e a transmitiu a um grupo dos povos hebreus. Depois, esse Moisés foi morto por seus seguidores, o que provocou uma cisão e a formação de um trauma coletivo que só foi elaborado séculos depois" (FREUD, 2013, p. 41).

Essa elaboração do trauma coletivo, segundo Freud, é semelhante ao mecanismo de recalque e retorno do recalcado que ocorre no inconsciente individual. A morte de Moisés teria sido reprimida pelo povo, mas seus efeitos continuaram a agir na memória coletiva, influenciando o desenvolvimento da religião judaica. Este é um ponto central em que Freud aplica os conceitos psicanalíticos à história e à cultura. Em uma das passagens do livro, ele escreve:

Assim como no neurótico o trauma esquecido atua de maneira latente e reaparece sob a forma de sintomas, no povo judeu a lembrança recalcada do assassinato de Moisés persistiu sob forma disfarçada, moldando as bases de sua religião. O Deus único e severo, distante e invisível, é um reflexo da figura paterna perdida e venerada. A religião monoteísta nasce, portanto, como um retorno do recalcado, uma formação de compromisso entre a culpa inconsciente e a necessidade de coesão social (FREUD, 2013, p. 98).

A relação entre o pai morto e a constituição da religião monoteísta é uma das teses mais polêmicas do livro. Freud articula a figura de Moisés com o complexo de Édipo, sugerindo que o assassinato do pai fundador, um ato de rebelião primal, gera a culpa coletiva que será a base da moral e da lei religiosa. O monoteísmo, nesse sentido, não nasce da revelação divina, mas de um crime original. Como o próprio Freud afirma: “A religião monoteísta é a herança da culpa pela morte do pai. A moralidade, o sentimento de dever e obediência ao Deus único são substitutos psíquicos da repressão e do medo desse crime primordial” (FREUD, 2013, p. 114).


Freud também considera a figura de Moisés como uma construção histórica que passou por diversas camadas de transformação. Ele traz à tona a ideia de que duas figuras do Moisés teriam existido: o primeiro, egípcio e adepto do monoteísmo atenista, e o segundo, um sacerdote madianita. Essa fusão histórica, segundo Freud, teria sido motivada pela necessidade de ocultar o trauma do assassinato do primeiro Moisés, criando uma narrativa religiosa que apagasse o conflito inicial e unificasse o povo sob uma nova identidade.

Além do aspecto histórico e psicanalítico, Freud faz uma crítica à religião como fenômeno de origem neurótica. O sentimento religioso seria uma projeção das relações familiares, especialmente do desejo e da ambivalência em relação ao pai. Assim, o monoteísmo não é visto como um progresso racional, mas como uma sublimação de impulsos inconscientes. Em uma citação emblemática, Freud escreve:

Deus foi, no início, nada mais do que um pai engrandecido. Ele conservou os traços do pai: a força, a justiça, a severidade. A religião nada mais é do que a neurose obsessiva da humanidade, e como a neurose infantil, ela resulta de uma culpa e de um desejo reprimido (FREUD, 2013, p. 130).

Ao interpretar a religião como uma formação substitutiva, Freud antecipa reflexões contemporâneas sobre a função simbólica da fé e sua relação com a estrutura psíquica. Ele não nega a importância cultural da religião, mas destaca que seu núcleo é irracional, ligado ao inconsciente e aos mecanismos de defesa psíquicos.

Apesar das inúmeras críticas que Moisés e o Monoteísmo recebeu, tanto de estudiosos da religião quanto de historiadores, o texto permanece como uma obra instigante. Nele, Freud estende os limites da psicanálise e oferece uma nova chave de leitura para a história das religiões, baseada não em revelações divinas, mas em traumas humanos.


Referência: 

FREUD, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Tremedal - BA, 30 de julho de 2025.

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